sexta-feira, 27 de julho de 2012

Um modesto Ensaio


Algumas questões de Estilo e Enredo em Minha Gente, conto de Guimarães Rosa.


Francisco Gesival Gurgel de Sales.


Expressão de mundo, de realidades, de possibilidades inúmeras de interpretações e vivências, meio de reflexão sobre a vida e sobre o ser humano, espetáculo artístico presente através da linguagem e dos diferentes estilos aplicados aos textos, a literatura transcende o simples conceito de “arte da palavra”. A palavra com a arte revela, a olho nu, as facetas cotidianas do ser, os caminhos psicológicos e palpáveis da vivência do homem. Através dela nos reconhecemos e nos distanciamos de nós mesmos, ficamos cara-a-cara com um ser plural, multipolar e indefinido; captamos algo que é a vida, que é o mundo, que é o ser, mas se estamos indo longe, reflexivamente, nos damos conta que estamos estáticos. Hora somos uma complexidade insana, hora, uma simplicidade tosca.  Conceituá-la é cair sempre em redundância. Os grandes nomes da literatura brasileira e suas grandes obras nos fazem assim pensar. Não nos deixam conclusões, porém mexem com nosso pensamento de maneira a nos causar um instigante conflito conosco e com o nosso exterior, ficamos, assim, inquietos, quanto à existência ou não de um mistério na vida. Buscamos a felicidade e o prazer, às vezes, por meio da razão e, às vezes, pela emoção. 

Guimarães Rosa é, sem hesitações, um desses gênios da literatura que nos remete a tal confusão. É um exímio contador de histórias que nos orienta nesse mergulho à alma humana e às suas possibilidades de construção e afirmação ou à sua leva de experiências interdependentes e várias. Junto a Machado de Assis, ele parece ser um dos maiores ícones na arte de contar casos com um estilo específico que sempre nos incomoda e perturba a crítica literária. 

Neste falível e modesto trabalho, nos limitamos a discutir um pouco essas realidades na vida do ser humano e como, estilisticamente, Guimarães usa a linguagem para expressá-las, situando a obra no contexto do Pós-Modernismo Brasileiro. Para tanto, usaremos o conto “Minha Gente”, do livro Sagarana, obra do mencionado autor, para muitos, pós-moderno.

O conto Minha Gente

À leitura de Minha Gente, ficamos fascinados pela forma simples de se contar uma história tão cotidiana, que engloba tantos elementos, que de tão medíocre, são essenciais a nossa vida. Talvez seja, de todo o livro, o conto mais bem elaborado tecnicamente, com uma história tão bem tramada e contada. O autor utiliza os mais diversos elementos do cotidiano regionalista, fazendo com que o leitor esteja o mais presente possível no enredo, no sertão de Minas Gerais, como na cena que inicia a trama:

"Quando vim, nessa viagem, ficar uns dias na fazenda do meu Tio Emílio, não era a primeira vez. Já sabia que das moitas de beira de estrada trafegam para a roupa da gente umas bolas de centenas de carrapatinhos, de dispersão rápida, picadas milmalditas e difícil catação; que a fruta mal madura da cagaiteira, comida com sol quente tonteia como cachaça; que não valia a pena pedir e nem querer tomar beijos às primas; que uma cilha bem apertada poupa dissabor na caminhada; que parar à sombra da aroeirinha é ficar com o corpo empipocado de coceira vermelha; que quando o cavalo começa aparecer mais comprido, é que o arreio está saindo para trás, com o respectivo cavaleiro; e, assim, longe outras coisas. Mas muitas mais outras eu ainda tinha que aprender."

Esse simples trecho, dá ao leitor a impressão de que o autor tem total controle da construção do cenário, um espaço vivo e tangível, real na sua descrição, que envolve-nos, de início e nos leva ao desenrolar de uma detalhada história adequada perfeitamente aos moldes do conto tradicional, porém com uma roupagem e um estilo únicos modernos, ou melhor contextualizando, pós-moderno.
O autor, através da figura narratológica, parece respirar aqueles ares de fazenda transpondo a quem lê, a mesma sensação de caminhada ao seu destino. Esse destino, que para a personagem é a fazenda do Tio, nos remete a pensar-lhe o destino também do conto. Em sua totalidade, o texto é bem aplicado aos moldes do conto literário. Todavia, e sem pecado algum, além dessa forma narrativa e do estilo corrido, claro e transparente, Guimarães reinventa a linguagem de tal forma que o sertanejo encontra-se com seus valores de ser humano ligado a um cotidiano vivo, como bem encontramos em William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães em seu Português: linguagens do ensino médio: “a obra surpreendeu a crítica, em virtude da originalidade de sua linguagem e de suas técnicas narrativas...” e mais à frente, resumindo bem o caráter pós-moderno e estilístico de Rosa:
A novidade linguística trazida pelo regionalismo de Rosa foi a de recriar, na literatura, a fala do sertanejo não apenas no plano do vocabulário, como outros autores tinham feito, mas também no da sintaxe (a construção das frases) e no da melodia da frase. Dando voz ao homem do sertão por meio de técnicas como o foco narrativo em primeira pessoa, o discurso direto, o discurso indireto, o monólogo interior, a língua falada no sertão está presente em toda a obra, resultado de muitos anos de observação, anotações e pesquisa linguística. (p. 463)

Esse novo perfil da narração na literatura situa o autor em questão num ambiente além do modernismo e do puro regionalismo. Guimarães é pós-moderno, graças, dentre outros aspectos, ao seu estilo novo. Sua maneira de expressar a realidade, de mostrar através da teia de relações que une as personagens de Minha Gente como as pessoas agem e arquitetam seus destinos de modo que não percebem ou ignoram a força das consequências das suas ações ou da ausência de suas atitudes que para muitos são caprichos do destino . Guimarães trata dos temas solidão e amor de maneira caprichosa, interseccionando decepções, ânsias, pretensões e acontecimentos múltiplos que se intercalam num extremo “apego à vida, fauna, flora e costumes de Minas Gerais” .
Usando seu estilo único de expressão, Guimarães Rosa construiu um conto sumariamente contido na sua forma e rico no que diz respeito ao sentido ou à interpretação. Racional no tratamento com a fraqueza humana diante do destino e da flexibilidade da vivência e sentimental na maneira de selecionar temas tão reflexivos que abordam tantas questões da alma e do dia-a-dia, Minha Gente traz inúmeras faces pra se pensar a vida, vários caminhos para se deleitar com a arte, que talvez, seja mais que imitar a realidade; seja ela, porventura, a própria realidade perante o leitor.


REFERÊNCIAS

ROSA, João Guimarães. Sagarana. 31ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

CEREJA, William Roberto, MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: linguagens. 1ª edição. São Paulo: Editora Atual. 2003.

http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/m/minha_gente_conto. Acesso em 19/02/2012.

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